Rastreamento populacional: O que os dados nos contam

O coeficiente de rastreamento populacional para as principais linhas de cuidado é baixo, confira a analise de dados de milhões de pacientes:
Rastreamento populacional: O que os dados nos contam
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Eu sou capaz de apostar que, se você é uma pessoa do sexo feminino, entre 25 e 64 anos, provavelmente nunca recebeu alguma convocação formal para realizar sistematicamente o seu exame de Papanicolau para o rastreamento de câncer de colo de útero. Do mesmo modo, se você é também uma pessoa do sexo feminino, entre 50 e 69 anos, ou uma pessoa de qualquer sexo, entre 50 e 75 anos, sou capaz de dizer o mesmo em relação ao seu processo de rastreamento de câncer de mama e câncer colorretal (faixas etárias e rastreamentos aqui selecionados são comentados mais à frente, sempre à luz das evidências).

Por isso, se é que o faz, eu diria que seus exames de rastreamento ocorrem sem muita sistematização: vez ou outra, sem periodicidade correta, sem relação com seu risco basal, de forma oportunística mesmo, quando eventualmente você mesmo se lembra, em geral quando alarmado por algum caso precoce em parentes próximos ou erroneamente aliciado por campanhas episódicas de evidência duvidosa (cuja discussão eu remeto ao artigo publicado pelo colega, também Médico de Família, Luís Guilherme de Mendonça no blog da Dexpertio).

Sim, essa foi a infeliz, mas não surpreendente conclusão a que chegamos ao analisar dados de saúde de milhões de pacientes a partir da base do projeto Health Intelligence, da 3778: a proporção entre pessoas com critérios para se indicar o rastreamento e que efetivamente o fizeram na periodicidade indicada sobre o total de pessoas que deveriam tê-lo feito é bastante pequena. Daí a minha garantia em apostar contra você:

Proporção de rastreados indicados realizados e rastreamentos indicados. Fonte: Health Intelligence 3778

Essa conclusão foi oportunamente divulgada por nosso Head de Marketing Leandro Ribeiro, tanto na revista Revista Medicina S/A (Link da matéria), quanto no SBT News (Link da matéria), mas requento a notícia aqui em nosso blog para mostrarmos mais detalhes. Utilizando os conhecimentos adquiridos sobre a natureza dos dados em saúde (da nossa última postagem), podemos empregá-los para realizar a gestão do cuidado em consonância com a estratégia de alto risco e a estratégia de amplitude populacional, sugeridas por Geofrey Rose em seu livro (fortemente indicado para aqueles que querem falar sobre prevenção em saúde com alguma propriedade).

Capa do livro do autor Geofrrey Rose. FONTE: Amazon

Pois bem, lembre-se que, como comentamos anteriormente, os dados de conta médica são como o "mata-borrão" dos dados em saúde: diante da necessidade primária de se pagar e se receber dentro da cadeia de valor em saúde, a conta médica absorve certas informações clínicas. Assim, é possível abstrair desses dados, ubiquamente disponíveis, insights epidemiológicos bastantes interessantes sobre a população.

Veja só: de posse de dados do sinistro de dezenas de clientes, envolvendo cerca de milhões de pacientes, em um total de bilhões de reais processados, entre 2014 e 2023, compusemos nossos coeficientes de rastreamento.

E nesse ponto, antes de avançarmos com os cálculos, é importante também resgatarmos alguns conceitos fundamentais, sob o risco de, sem eles, perpetuarmos o discurso terrorista da "indústria da doença" ou Disease Mongering:

  • Rastreamento: é a realização de testes ou exames diagnósticos de triagem em pessoas assintomáticas, com a finalidade de identificar riscos potenciais. O rastreamento difere flagrantemente do conceito de Diagnóstico Precoce, cujas ações propedêuticas estão destinadas a identificar a doença em estágio inicial a partir de sintomas e/ou sinais já perceptíveis clinicamente (Para entender melhor, não deixe de ler o Caderno 29 de atenção primária).
  • Sustentação teórica de ações de rastreamento: o rastreamento é uma abordagem de triagem que submete muitas pessoas assintomáticas a uma sequência de intervenções para que apenas algumas delas sejam beneficiadas, porque poucas têm a doença em potencial. Desse modo, o rastreamento é uma típica situação que conduz ao chamado ao paradoxo da prevenção: a estratégia preventiva populacional que traz mais benefícios para a saúde da população oferece poucas vantagens para cada participante individualmente (ROSE, 1985). Por isso, quando se pretende instituir algum tipo de intervenção numa amplitude populacional, tal intervenção deve ter garantidos alguns critérios objetivos para sua aplicação. Teoricamente, se esses critérios não são comprovados, ou se houver dúvidas sobre tal comprovação, a intervenção não pode ser estabelecida de pronto, com segurança, até que se chegue a uma conclusão mais embasada. Isso porque, quando se fala em rastreamento, deve-se pensar na visão de coletividade, e não individualmente (se quiser se aprofundar ainda mais no assunto, aqui temos um curso da UNASUS elaborado pelo colega Ronaldo Zonta).
  • Critérios para o estabelecimento de programas de rastreamento: para a implantação de programas de rastreamento, o problema clínico a ser rastreado deve atender a alguns critérios (Wilson e Jungner): 1. A doença deve representar um importante problema de saúde pública que seja relevante para a população, levando em consideração os conceitos de magnitude, transcendência e vulnerabilidade; 2. A história natural da doença ou do problema clínico deve ser bem conhecida; 3. Deve existir estágio pré-clínico (assintomático) bem definido, durante o qual a doença possa ser diagnosticada; 4. O benefício da detecção e do tratamento precoce com o rastreamento deve ser maior do que se a condição fosse tratada no momento habitual de diagnóstico; 5. Os exames que detectam a condição clínica no estágio assintomático devem estar disponíveis, aceitáveis e confiáveis; 6. O custo do rastreamento e tratamento de uma condição clínica deve ser razoável e compatível com o orçamento destinado ao sistema de saúde como um todo; 7. O rastreamento deve ser um processo contínuo e sistemático; 8. A adesão ao programa deve ser voluntária e entendida como direito do cidadão e o participante deve receber orientação quanto ao significado, riscos e benefícios do rastreamento, bem como sobre as peculiaridades e rotinas do programa e dos procedimentos.

Com esses conceitos em mente, agora fica mais fácil justificar o porquê de termos escolhido apenas os rastreamentos de câncer de colo de útero, câncer de mama e câncer colorretal, assim como seus respectivos critérios de faixa etária e sexo, para nossa pesquisa: em termos de rastreamento de doenças oncológicas, apenas essas linhas de rastreio para apenas esses critérios de faixa etária e sexo têm evidência suficiente para mobilizarem ações de amplitude populacional com exames complementares (nossas referências maiores são INCA e U.S. Preventive Services Task Force).

Feito isso, podemos voltar aos cálculos, colocando primeiramente no denominador todo esse conjunto da população alvo para cada tipo de rastreamento. Já no numerador, vai a parcela dessa mesma população alvo que teve identificada na conta médica os exames realizados (e por isso cobrados), pesquisáveis através de códigos de procedimentos (será um capítulo a parte explicar como no projeto Health Intelligence conseguimos qualificar e enriquecer os dados de conta médica a ponto de conseguimos analisá-los de forma sistematizada, pois, em estado bruto, isto não seria factível):

  • Para o rastreamento de câncer de colo de útero, consideramos um conjunto de códigos de procedimentos que remetem, por exemplo, à citologia oncótica, desde que feita pelo menos uma vez nos últimos 3 anos;
  • Para o rastreamento de câncer de mama, consideramos um conjunto de códigos de procedimento que remetem, por exemplo, à mamografia, desde que feita pelo menos uma vez nos últimos 2 anos;
  • Para o rastreamento de câncer colorretal, consideramos um conjunto de códigos de procedimento que remetem, por exemplo, à pesquisa de sangue oculto nas fezes, desde que feito pelo menos uma vez no último ano, ou à colonoscopia, desde que feita pelo menos uma vez nos últimos 10 anos.

Sobre esses números alocados em denominador e numerador, vale deixar anotadas as seguintes ressalvas que poderiam introduzir vieses:

  • No nosso caso, utilizando apenas dados de conta médica, não temos em mãos os resultados dos exames. Por isso, para efeito de cumprimento do rastreio, consideramos a frequência mínima de pelo menos um exame dentro da periodicidade máxima para cada tipo de rastreio, situação que deveria ocorrer apenas quando se têm resultados de exames normais;
  • Alguns pacientes têm problemas cadastrais, não sendo identificável a data de nascimento ou sexo, de modo que são excluídos do denominador e numerador, o que pode tornar o indicador subestimado;
  • E, por fim, a realização dos exames é pesquisada dentro da conta médica, a partir da utilização do plano de saúde. Assim, embora pequena, existe a possibilidade de pacientes terem feito esses exames fora da rede do plano de saúde e também não terem solicitado reembolso, de forma que a realização do exame não será contabilizada, o que também pode tornar o indicador subestimado.

Apesar dessas considerações, que poderiam facilmente alargar nosso intervalo de confiança nos achados, eu não me surpreendo com as nossas constatações, por mais infelizes que sejam, porque, de fato, esse é o retrato da saúde das nossas populações: descoordenação.

Digo descoordenação porque o problema não é que as pessoas não fazem exames e, consequentemente, não fazem os exames de rastreamento. Pelo contrário, sabemos que as pessoas fazem exageradamente muitos exames. Para se ter uma noção disso, historicamente, segundo análise do IESS, a frequência anual de exames por beneficiário na saúde suplementar é cerca de 20 exames por pessoa por ano.

No entanto, em meio a tantos exames, o que encontramos é uma série de exames desnecessários, solicitados despropositadamente, sem racionalidade clínica. Mas não encontramos lá justamente aqueles mais pertinentes, que deveriam ser realizados, como os exames de rastreio. É isso que os dados nos contam.

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